Sabe como é... pandemia e os caralho. Faziam dois anos que eu não saia de casa. Até que em determinado momento, galgado na minha discrição e na sabedoria dos Deuses, eu resolvi sair de casa. Vesti minha máscara e pensei: Vou tomar um porre.
Não que eu não estivesse bebendo aqui dentro. Mas beber na rua.... talvez fizesse as coisas acontecerem. A roda da fortuna nunca para de girar. Tudo depende de quando você resolve saltar fora dela.
Me olhei no espelho. Ali estava um cara não tão mais jovem. Com 30 anos na cara você não tem mais desculpas. Ajeitei a máscara no rosto, cuidei para o nariz estar bem protegido (eu acredito na Ciência, afinal) baguncei meu cabelo milimetricamente e andei pelo corredor.
A gata laranja estava na sala, deitada no sofá. Me olhou com desconfiança.
- Oi, Belle. - tentei ser carinhoso.
Ela pulou fora para a varanda e me deu as costas.
Tirei minha chave do bolso, abri a porta da área de serviço. Desci as escadas do primeiro andar e ganhei a rua.
Tudo parecia o mesmo. As pessoas continuavam suas vidas normalmente. Quem liga que tantos conhecidos tenham morrido? Andavam pra lá e pra cá com seus cachorros pinscher, passeavam preguiçosamente enquanto suas crianças saltavam e perambulavam energicamente. Nada afeta os habitantes de Águas Claras. Pouco tempo atrás chegou a notícia de uma guerra. Um presidente conservador e um povo tendendo para o neofascismo estavam se engalfinhando no outro lado do mundo, por causa da geopolítica, e do status quo ditava a venda de armas. Eu também ligava pouco. Não era pra esse tipo de reflexão que eu resolvi dar uma volta.
Caminhei desesperançado até o bar. Ali estavam os mesmos bêbados de sempre, abusando da paciência dessas mulheres que lá trabalham. Uma moça mais velha chamada Carla, e uma garota uns 10 anos mais nova que eu, que nunca prestei atenção no nome. Elas lidam com esses chatos sem-noção com uma prática implacável. Estão sempre ligados no futebol, e sempre prontos a dar opinião sobre assuntos que pouco dominam. Me esgueiro entre um macho escroto e outro e abro a geladeira das cervejas. Pego uma. Normalmente, pegaria 5, e rumaria para casa. Mas hoje é dia de fazer as coisas acontecerem, não é mesmo?
Quando começo a andar até o caixa, noto que uma fila se formou. Me planto atrás de uma jovem de cabelos pretos. Espero minha vez.
Ela se vira e olha pra mim.
- Itaipava! - ela diz com um sorriso. - Essa é da boa.
- É boa porque é barata. Nada muito além disso.
Ela ri.
- Quanto menos dinheiro, mais álcool no sangue!
Aí estava um ser humano sábio. Ela devia ter pouco menos que minha idade, mas transbordava carisma e sabedoria. Usava uma franja meio emo que combinava com as fivelas azuis no cabelo. Seus olhos eram de um castanho claro e suave. Ela me fitou com esses olhos, por cima da máscara de pano preta com uma estrela vermelha do lado esquerdo. Retribuí o olhar. Ambos soubemos que estávamos compartilhando um tipo de confidência rara. Dessas que parecem até uma amizade provada pelo tempo. Apesar do pouco tempo.
Olhei para o que ela estava segurado. Uma garrafa de Heineken.
- Heineken! - Eu disse num ímpeto salutar. - Parece que alguém recebeu o salário hoje.
- Se é que pode se chamar de salário. Recebi um pix e é isso que importa.
- Sei bem como é. Às vezes temos o suficiente pra uma noite. Às vezes temos noites demais pra ter o suficiente.
- Nosssaa.... seria poético se não fosse tosco - Ela ri, dessa vez mais alto. - Mas gostei do aforismo. Você é poeta? Escritor freelancer?
- Sou músico.
- Ai, gente, tadinho...
- É, sei sei. Tô na base da cadeia alimentar.
- Talvez pior até que eu. E olha que eu sou ilustradora.
- Artista plástica?
-UnB, 2016.
- Porra, aí sim... eu nunca consegui me formar em porcaria nenhuma.
- Não importa. Pelo menos você tá fazendo o que gosta. Querendo ou não, isso é um privilégio.
- Um entre muitos, né. Homem, jovem, hétero cis e branco. Não deveria estar tão na base assim.
- Talvez a pobreza voluntária seja sua virtude.
- Gostaria de acreditar que sim. Mas, também, seria gostoso limpar minhas lágrimas com uma nota de 100.
Ela riu de novo.
Chegou a vez dela. Ela colocou a garrafa no balcão e tirou o celular do bolso. Escaneou o QR Code do pix do bar que está colado com durex no balcão.
Só isso, meu bem? - Carla perguntou com esmero.
- Por enquanto, só. Vamos ver como a noite se desenrola.
Carla ri.
Paguei com meu cartão de débito. Aquele cinza que tem uma guitarra desenhada na parte da frente. Às vezes acho que preciso me afirmar como músico com frequência, do contrário, jamais o seria.
- Desculpa - eu disse, seguindo a garota enquanto saíamos do bar. - Eu não peguei seu nome - provavelmente eu estava traduzindo uma expressão em inglês ("didn't catch your name"). Nem me toquei que, em português, isso soava como um flerte mais do que eu gostaria. Me dei conta disso pouco depois e me senti meio idiota. Porque, afinal, eu usava expressões de sitcoms estadounidenses pra me expressar? Acho que o complexo de vira-lata afeta até um esquerdista como eu.
- Ah, eu sou a Bia! Beatriz.
- Beatriz!
- Pode me chamar de Bia - dissemos ao mesmo tempo.
- Gostei da sua máscara
- Bonita, né? Eu que fiz.
- Uau! Ficou da hora.
- Bem, "eu que fiz" é exagero. Provavelmente chineses em condições análogas a escravidão fizeram. Eu só pintei a estrela.
Nós rimos.
- Nunca entendi esse rolê dos trabalhos precarizados na China. O partido Comunista não faz nada pra impedir essa bagaça?
- Contradições do socialismo real! Mas não sou nenhuma perita em comunismo Chinês.
Estávamos de pé em frente ao bar. Ela se sentou no meio fio, sem se importar. Eu fiz o mesmo, ao seu lado.
Ficamos alguns segundos em silêncio.
- Essa pandemia derrubou muito a gente, não é? - Eu perguntei sem saber muito pra onde esse papo ia nos levar
- Porra, totalmente. - Ela disse - Todo mundo que eu conheço está com algum problema. Ansiedade, depressão, autodepreciação. Parece que nossa geração passou por um momento de pagar pelos pecados.
- Isso é pesado. - Eu disse, dando um gole na minha cerveja. - Mas, no fim das contas, talvez também seja um momento de catarse.
- Em que sentido?
- Acho que no sentido de ver que nossos problemas pré-pandemia são pequenos. E se podemos superar esse caos que foi colocado sem a nossa permissão, podemos passar por muita coisa.
- Gosto de como você pensa. Eu costumo ser a garota pessimista do rolê. Mas meu coração é mole no fim das contas.
- Parecer durona pra não deixar transparecer, mas sentir tudo com intensidade? Esse sou eu também.
- Hahaha... Sim. Você realmente fala como um artista, já te disseram isso?
Deu um gole com um sorriso num canto da boca.
- Eu tento me expressar de acordo com minha essência. Ainda que não saiba fazer isso o tempo todo.
- No fim das contas, tudo o que existe é ser você mesmo. Trair isso é um pecado mortal.
- Você fala muito em pecado, é católica?
Ela pareceu surpresa. Riu em seguida e deu um gole em sua cerveja.
- Estudei em escola católica a infância inteira. Na adolescência fui pra Escola Pública. Foi o começo da minha rebeldia.
- Você quis ir?
Ela assentiu.
- Não fazia sentido pregar o amor aos pobres e nunca ter olhado alguém mais necessitado que eu nos olhos.
- Uau. Faz sentido. Forte isso. Eu estudei um ano em uma escola católica também. Mas transitei entre as escolas particulares pequeno-burguesas a infancia e adolescência toda.
- Um brinde - Ela propôs, erguendo sua Heineken em frente ao meu nariz. - Aos pobres e aos excluídos!
Ergui minha lata de Itaipava e bati na Heineken dela. Tome um vigoroso gole e notei ela me olhando de canto de olho enquanto bicava sua cerveja.
- Que tipo de música você faz?
- Trilha sonora pra Games, principalmente. É o que tem me movido ultimamente. Mas talvez minha essência esteja bastante no Rock e Metal. Especificamente Stoner Rock e Doom Metal nos ultimos 10 anos.
Ela me olhava enquanto eu falava. Parecia entrertida.
- Caralho, 10 anos.... Já faz uma década que eu descobri a última tendencia que me fez mergulhar na minha capacidade criativa. Acho que to ficando velho.
- Você não parece velho. Quantos anos tem?
- 30.
- Hum. - Ela engoliu um gole - Achei que tinha bem menos. Vinte e poucos?
- Eu não pareço tão velho mesmo. Culpo a falta de barba.
- Mas isso é bom. Sinal de boa genética.
- Não que eu me esforce muito pra ter boa saúde. Mas realmente não tenho do que reclamar.
- Um pouco de cada vez te leva longe - Ela disse - Caminhar todos os dias já ajuda muito.
- Sim, sim.... tem razão. Preciso vencer minha inércia física.
- É só fazer. Se forçar e cumprir um compromisso consigo mesmo.
- E essa é a parte mais difícil.
- Sim, total.
- Um brinde às partes difíceis da vida. - Eu disse, erguendo minha lata de Itaipava em frente ao nariz dela.
Brindamos. Logo depois ela se levantou e perguntou: "vamo andando"?
- Pra onde?
- Qualquer lugar. Não gosto muito de ficar aqui.
Os homens estavam assistindo um jogo de futebol e berrando de quando em quando, enquanto faziam comentários escrotos sobre os jogadores. Eu também não era muito fã desse ambiente. Assenti. Me levantei e fomos caminhando juntos.
Anoitecia. O céu estava quase em nuvens e era possível ver estrelas se mostrando timidamente. Andamos em silêncio lado a lado por um minuto inteiro.
- É aqui que eu fico. - Ela disse.
- Aqui? Onde você mora?
- Longe de tudo. Perto de nada. No fim das contas, tudo o que temos somos nós mesmos.
- Que?
Ela simplesmente desapareceu diante dos meus olhos. Como se nunca estivesse estado lá. Como se fosse uma película de filme se transpondo sobre outra. Um efeito maravilhoso, e cálido.
No fim das contas eu sempre estive só.